Desafios e estratégias familiares para o enfrentamento da COVID-19
- Andréia Ferreira
- 4 de set. de 2020
- 6 min de leitura
Atualizado: 26 de mar. de 2023
A família em quarentena, o que fazer para minimizar o estresse. Continue lendo e saiba mais!

A partir da prática clínica, dos relatos dos profissionais, dos estudos e pesquisas atuais, é possível observar que a pandemia de COVID-19 tem trazido grandes reflexões, desafios e aprendizagens às famílias.
Para as famílias não está sendo fácil. No início da quarentena não havia elementos suficientes para entender o que de fato a pandemia iria impactar na vida privada e social das pessoas. À medida em que a pandemia vai se desenrolando, é possível observar diferentes momentos na dinâmica familiar, desde adaptações na rotinas e logística de vida, descoberta de novas possibilidades de comunicação, adaptações no mundo do trabalho e das atividades escolares, aumento das preocupações, medos e inseguranças, contato com o vírus, seja na forma da doença em si, seja na perda de pessoas conhecidas, de pessoas queridas, de luto sem despedida, por exemplo, ou seja, há seis meses de intensa exposição a fatores estressores, cujas implicações para o indivíduo são muitas e complexas. Não está fácil para ninguém. Poderia arriscar a dizer que é impossível que alguém não tenha sido afetado de alguma forma, pelas condições do contexto da pandemia de COVID-19 em 2020.
Não bastasse todos os impactos na vida pessoal e organização social, os efeitos psicológicos da COVID-19, cujas pesquisas já apontam e são observados no cotidiano, em todas as faixas etárias, podem afetar diretamente a capacidade da pessoa pensar, discernir, sentir e reagir diante de sua realidade com o mundo, com o outro e consigo mesmo. Sintomas de ansiedade, depressão, angústia, transtornos do sono, da alimentação, ideação suicida, consumo de álcool e outras drogas, irritabilidade, dificuldade de concentração, apatia, medo, insegurança, aumento das preocupações, entre outros, podem surgir em função do estresse provocado pelas mudanças no cotidiano, mas também podem ser agravados se forem condições preexistentes, tanto em crianças quanto em adultos. Nenhum efeito psicológico deve ser negligenciado, mesmo que se apresente de forma leve e transitória. Por outro lado, a frequência, a constância e a intensidade do mal-estar provocado por fatores psicológicos deve servir de alerta para a busca de ajuda profissional. Cada pessoa é única e pode apresentar um ou vários sintomas psicológicos, mas ninguém será como ninguém.
Os impactos dos efeitos e sintomas psicológicos podem se apresentar em menor ou maior gravidade, dependendo do contexto de vida e das condições da pessoa, dos fatores de vulnerabilidades e da rede de apoio que ela encontra para enfrentar sua realidade de vida (família, amigos, redes de serviços de saúde, assistência, educação, grupos de apoio, espiritualidade...).
Quando a convivência familiar sofre interferência da conjugação de fatores estressores, a tensão pode se intensificar, ocasionando outros problemas, inclusive sintomas psicológicos em crianças, adolescentes, adultos, idosos, e até mesmo, episódios de violência, em todas as suas perversas faces. As coisas podem ficar complicadas. Quando isso acontece é preciso parar tudo, respirar fundo e promover mais uma mudança: a mudança na relação consigo mesmo, com o outro e com o mundo. É preciso desconstruir as práticas que produzem adoecimento, com práticas parentais positivas que possam auxiliar na resolução de conflitos e fortalecer os laços afetivos na família.
Algumas estratégias podem ser eficazes para diminuir o estresse e tensionamento familiar e favorecer a adaptação aos desafios impostos pela pandemia e até mesmo depois dela.

Estabelecer o diálogo franco, aberto, se acolher, acolher o outro, sem julgamentos ou cobranças, buscando meios individuais e coletivos para lidar com os problemas, é a abertura para o fortalecimento do afeto na família.
O organizar a rotina familiar, incluindo rotina de alimentação e sono, atividades escolares e trabalho, o mais o mais próximo possível da rotina habitual, pode reduzir o estresse familiar. Entretanto, deve haver flexibilidade e bom senso, para que o cumprir a rotina não se torne em mais fator estressante.
Construir acordos coletivos - a construção conjunta de acordos e regras de convivência pode diminuir os conflitos. Sempre que possível, é melhor trabalhar com regras construídas coletivamente, ao invés de proibições, ou seja, troque o “não deves” por “deves”. Com isso o foco passa a ser o comportamento que se deseja em vez do não desejado;
Dividir tarefas - as tarefas domésticas podem ser divididas, inclusive com as crianças, respeitando o que cada uma consegue fazer com segurança. A sobrecarga e o sentimento de frustração por não conseguir dar conta de tudo, contribui muito para o adoecimento psíquico, e tem sido muito observado em mulheres, que relatam exaustão.
Estabelecer um tempo de convivência com os moradores da casa, mas também resguardar a individualidade de cada um, dando espaço para a privacidade e para cada um fazer suas próprias coisas sem ser importunado.
Fazer atividades físicas, cognitivas de relaxamento são imprescindíveis, mas ter um tempo dedicado ao descanso também é fundamental, tanto para adultos quanto para as crianças.
Buscar, manter e fortalecer as conexões interpessoais, com familiares, amigos, rede de apoio, ainda que por meio das tecnologias de comunicação.
É preciso conversar com as crianças sobre a pandemia, elas têm alguma ideia sobre o que está acontecendo. Então é preciso falar sobre os sentimentos, desmitificando os medos, mas também apresentar informações corretas, orientar em relação às medidas de cuidado e prevenção, esclarecer dúvidas. Escutar e acolher as angústias das crianças, a partir de uma postura sensível a todos os assuntos angustiantes para a criança é um dos melhores caminhos para a confiança entre pais e filhos.
Manter expectativas realistas quanto ao que a criança é capaz de compreender e realizar, modulando o nível de exigências - as crianças pensam, sentem e se comportam de acordo com as possibilidades cognitivas, motoras, afetivas e sociais de cada faixa etária e seu níveis de desenvolvimento, o que não significa que elas não sejam sujeitos ativos na interação social com outras pessoas de diferentes idades e capacidades, aprendendo a ser, através dos modelos de pessoas significativas em sua vida.
Na mediada do possível, é importante que a criança também estabeleça contato com outras pessoas, uma vez que o cuidado das crianças era compartilhado com a rede de apoio (avós ou outros familiares, creches, escolas, serviços de saúde, entre outros), e a interrupção desses contatos pode desencadear quebra de vínculos e sensação de abandono na criança. Também é importante o contato com outras crianças.
Em relação ao medo, é importante que os pais conversem sobre as inseguranças da criança, criando um ambiente de segurança para que possam identificar os medos e distinguir a fantasia da realidade, lembrando que no mundo interno da criança, os motivos do medo são reais. Bom senso, paciência e muito carinho são fundamentais para lidar com os medos infantis.
Uso de eletrônicos - segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria, no Manual de Orientação - Grupo de Trabalho Saúde na Era Digital, entre a idade de 2 anos completos e 5 anos a recomendação é de 1 hora por dia ao todo, ou seja, somando-se o período diário que a criança permanece na TV, celular, tabletes e videogames. Acima dessa idade é recomendável o tempo até 2 horas, a não ser em caso de trabalhos acadêmicos, estabelecendo intervalos de descanso e atividade física, restringindo o tempo de jogos online, uso de aplicativos e redes sociais, embora possa haver flexibilidade em função do contexto da pandemia. O acesso deve ser monitorado e permitido apenas ao que é liberado para cada idade, respeitando-se a classificação indicativa, evitando conteúdos que não sejam adequados à criança, ou seja, escolher jogos e canais de acordo com a faixa etária, para que os conteúdos promovam desenvolvimento e entretenimento às crianças. A preocupação com o uso de eletrônicos também de estende a adultos
As crianças precisam se movimentar, então é preciso criar momentos de lazer e recreação, inclusive com atividades ao ar livre, respeitando as recomendações de segurança.
Por fim, mas não em último lugar, para que possam ser agentes facilitadores para as crianças, os pais/responsáveis devem acolher suas próprias necessidades individuais e conjugais, dificuldades e sentimentos, dialogando com a família de forma honesta, para que haja reconhecimento e validação das necessidades de todos. Sentir-se amado e respeitado é fundamental para que haja segurança em relação aos vínculos afetivos e confiança em si mesmo, tanto para adultos quanto para crianças.
Essas são algumas recomendações, que podem ser avaliadas e adaptadas às condições de cada família, mas não são as únicas. As mudanças na vida em família ainda não acabaram. O fato de haver uma vacina não irá extinguir a circulação do vírus, por muito tempo ainda. É possível que este momento de angústia e sofrimento, também possa ser registrado com memórias afetivas positivas, a partir da vivência de ser reconhecido, acolhido, respeitado, momentos de resiliência e solidariedade.
É preciso construir estratégias de produção de saúde, de cuidado mútuo, para que possamos sobreviver à pandemia com os vínculos fortalecidos, mais conscientes de si mesmos e do mundo em que vivemos. Talvez esse seja o grande ensinamento que esta pandemia veio trazer ao mundo.
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